29 maio, 2008


Devo lhe dizer que siga as placas. Devo lhe dizer que obedeça. Devo lhe dizer que na verdade eles estão certos. Então aprenda a ler. E lendo, aprenda a ser delicado. Coma direitinho. Use o guardanapo. Não fume em público. Não peide. Use perfume e pelo amor de deus, escove os dentes e reze antes de dormir. Devo lhe dizer que a placa diz o que alguém mandou. Não questione então. Não buzine na porta do hospital. Não compre a arma da vitrine. Não pegue na bunda exposta da menina. Você está entendendo né? Aprenda desde já onde é o seu lugar. Fique nele. Não saia do seu lugar. Não invada. Não entre. Não se meta. Não meta nada em ninguém. Rezou? Escovou os dentes? Olhou se o sinal está verde? Então prove que você é do bem e dê sua cadeira a velhinha. Ofereça o seu lugar na fila. Bebeu demais de novo? Você não tem jeito. E isso é regra. Então obedeça as regras. Coloque só duas gotinhas. Mastigue. Mastigue. Mastigue. Leia direito. Depois discuta. Se for minoria, concorde. Se for maioria, concorde. Mantenha-se calado. Desligue o celular. Diga que entendeu o livro. Diga que entendeu o filme. Diga que entendeu a porra da tela abstrata. Mantenha a barba meio sem fazer. Mantenha os cabelos meio desalinhados. Mantenha as roupas meio amarrotadas. Mantenha um sorriso meio meia boca. E por favor, siga as placas. Crie um gato. Um cachorro. Um periquito australiano do brasil. Escute rádio de manhã. Aprenda uma música dessas ditas populares. E veja bem: siga as placas. Ande devagar, mas tenha pressa. Fale baixo, mas grite um pouco. Diga que é gente. Pessoa. Ser. Alma. Inteligência. Parte do todo. Que vai pro céu. É mentira, mas qual o problema? Você até pode mentir. Desde que siga as placas.

28 maio, 2008


Entro na desordem. E não tenho idade. Ou tenho. Enfim, entro na desordem. A desordem tem uma enorme boca de cena. Cortinas vermelhas que levanto devagar. Sem medo, apenas pra manter um clima. Apenas pra ser o primeiro a ver o que se esconde atrás da cortina.

Tem um deus morto dentro do elevador. Penso se devo olhar de perto. Penso se devo enfiar meus dedos nos orifícios da balas. Foram balas? Penso se devo lamber as feridas abertas pela faca. Foi uma faca? Penso se devo procurar um bilhete de suicídio. Será que foi suicídio?

Um demônio chora sentado em uma mesa lotada de garrafas vazias de cerveja. Debaixo de sua cauda vermelha brilhante um livro de aforismos de Oscar Wilde. Sento em sua mesa. Mantenho uma distancia segura. Pergunto se posso cantarolar alguma coisa. Ele sacode a mão, entediado. Desafino Lupiscínio Rodrigues. Ele me pede um cigarro, pergunta se posso deixar uma paga antes de sair.

Uma senhora passa nua da cintura para cima, empunhando uma bandeira azul cheia de estrelas. Para no centro do palco, sacode as próteses e diz solenemente: - “de agora em diante, está permitido falar besteira”. Um pequeno porco a segue de perto, farejando seus calcanhares.

Um copo vazio corta o espaço e se espatifa em algo além da minha vista. Vejo o barulho mais do que ouço o barulho. Sempre foi assim. Desde pequeno. Vejo o barulho das lagartixas. Vejo o barulho das roupas sendo atiradas pelo chão quando ela passa. Vejo a porta se batendo. Dizendo: - fôda-se meu rei! Fui!!!

A música sai das paredes. Fala de um garoto que amava os beatles e os stones. Fala do vietnã. Vietnã? A folha do notícias populares pingando sangue ri. Vietnã... os garotos não sabem dos stones. Os garotos não tem a menor idéia de quem são os caras de liverpoool. Fritam seus miolos com dendê e armam um pequeno vietnã em cada apartamento.

25 maio, 2008


A banca do velho Epifânio ficava embaixo de um pé de goiaba. Todos os dias – a não ser quando chovia – o velho Epifânio chegava, armava sua cadeira, colocava fumo no cachimbo, ligava o rádio baixinho, e ficava esperando seus clientes. Na maioria das vezes, velhas senhoras. Mas vinham também garotos drogados, prostitutas, e toda a fauna suburbana. Epifânio tinha um método engraçado de começar seu trabalho: pedia fotos antigas da pessoa, e pedia para a pessoa falar de si mesma durante meia hora. No outro dia, Epifãnio trazia um passado inteiro para o cliente. Assim, mendigos ganhavam um passado de riqueza e devassidão; garotos drogados amanheciam com a certeza de terem vindo de outros países e abandonados por seus pais desnaturados, etc.
Epifânio sempre soube que ninguém gosta de verdade da verdade. O que o sujeito quer, é um morto bonzinho, em seu passado para lembrar.

Josué era obcecado por despertadores. Tinha cinqüenta e nove. Todos iguais. Ele colocava-os para despertar em horários diferentes, e enlouquecia seus vizinhos. Aos domingos ele desligava todos os despertadores, descia os dois lances de escada, sentava ao lado da barraca do velho Epifânio e tocava ininterruptamente durante uma hora e meia. Seu sax era, para os vizinhos, um anúncio do domingo. Aliás, quando ele faltava, era comum as pessoas se perguntarem: - que dia é hoje?! – Josué, depois do seu show para ninguém, pegava uma laranja e a descascava pacientemente. Depois de chupada a laranja, começava a falar sozinho, primeiro baixinho, depois aos berros. – O que eu quero saber, de verdade é qual a função das crianças? Até porque eles só funcionam quando adultos. Então, congelem as crianças agora! Porque as lâmpadas queimam? Quem projetou os cangurus? E as buzinas? Quem foi o filho da puta que inventou as buzinas? Ah! Quer saber? Vão a merda.

Dona Leonor odiava Josué. Ela telefonava do orelhão da esquina para sua filha e reclamava todos os dias do barulho dos despertadores e do som desafinado do sax. Ela andava pelo bairro com a cabeça toda enrolada por bob´s coloridos e uma velha máquina fotográfica Leika pendurada no pescoço. Ela olhava para as pessoas estranhas ao bairro e, estando a uma distância segura, começava a fotografar. Ela tinha uma teoria em que – segundo ela – metade da população local era formada por extraterrestres. Por isso ela fotografava tanto, na esperança de flagrá-los em algum momento de distração. Ela mesma revelava as fotos, em um pequeno laboratório caseiro. Depois de reveladas, ela levava as fotos para mostrar a seu Almeidinha – dono do frigorífico – e pedir a opinião dele. As pessoas do bairro morriam de rir de dona Leonor, mas seu Almeidinha gostava dela. E sempre que podia, apontava as pessoas que ele não gostava e vaticinava: - Leonor, aquele é marciano com certeza.

16 maio, 2008


Válvula de escape de dor e medo
Cheiro, fumo, bebo, saio
Sumo sem deixar notícia
Corto minhas próprias feridas

Válvula de escape de dor e medo
Escorrego pelo ralo, atiro antes do outro
Nunca dou as costas
Apago de borracha minha sombra

Válvula de escape de dor e medo
Trepo, como, mordo, arranho
Nunca chego perto, pra não deixar pegadas
Um muro de concreto no lugar do coração

Válvula... estrada sem placas
Válvula... guitarra estridente na noite fria
Válvula... cavalgo no centauro na viagem derradeira
Válvula de escape de dor e medo, medo, medo!

14 maio, 2008

começo de uma carta pra ninguém


Você tem medo das palavras? Eu sim. A palavra tem esse dom escroto de abrir portas, de subir muros, de fomentar revoluções... Aí você pensa: - esse cara é louco. Louco um caralho meu amigo! A verdade? A verdade meu amigo, é que a verdade é mutante. Então, mentirei. E você lerá verdades em minhas mentiras. E você rimará coisas que não quis como poemas. E você usará temperos por demais sutis em coisas que precisam de pimenta e pólvora. Você tem medo das palavras? Deveria ter meu amigo. Deveria ter...
Você sabe onde eu moro? Eu moro no passado meu camarada. Tem vantagens sim, tem vantagens. Por exemplo? Eu não pago condomínio. Posso escutar the mamas e the papas e temperar com iron maiden. Posso ler herman hesse ou thomas mann. Posso comer comidas simples ou exóticas e encarar tudo isso – sempre – como novidades.
Eu guardo retratos nas paredes. Você não? Eles falam. Dream´s over. Eu nem traduzo. Quando fecho a porta da minha casa passado o silêncio manda. O silêncio. A enormidade do silêncio no meio da mais escandalosa algazarra. Sei de alguma coisa: não sei de nada.
O garoto enrola o ioiô e passeia na cidade. Vejo da janela. As pessoas não riem nessa cidade futuro. Por isso moro no passado. Ainda tenho medos de bombas atômicas, mas consigo sorrir.
Fecho os olhos. Sonho o velho walt whitman comendo rosbifes e limpando a boca em poemas que ele nem lembra mais. Quem lembra? Lembrar pra quê? Eu lembro... e a lembrança mora colada a minha casa, também no passado. Vomitando o futuro.
Viu? Eles não fecham os olhos. Os peixes, claro. Mudos e observadores. Amo peixes. E odeio peixes. E sim, é verdade: eles não fecham os olhos. Pensei que era só eu que dormia de olhos abertos...
Viu? E os calendários? Servem pra quê? Pra riscar os dias. Diz minha filha. Pra saber que não dá mais tempo. Diz o cobrador de ônibus. Pra esquecer o aniversário de alguém, diz a minha mãe. Pra lembra que esquecer é a grande jogada. Eu digo.
Daí, que o que tenho a te dizer é que começo os dias, quando eles não me começam. E obedeço cegamente ao comando dos meus pés que andam. Livres? Penso. Movimento idéias como malabares. Depois enjôo. E termino o dia, antes que ele me termine.
Me perdi nas idéias, entendeu? Acho até que perco as coisas de propósito. Por vontade de andar mais leve. Na hora, fico puto. Por comodidade, provavelmente. Sei que não posso inventariar o que perdi. Pouco? Muito? Perdi mais do que achei. Por isso, se não amarrar os pés, me flagro voando poraí. Me perdendo de mim.
É isso. Moro no passado. Me recuso a pagar aluguel, ou até condomínio.
Viu? Até.

13 maio, 2008


Sim querida minha o tempo tem me dito da falta dele sim querida minha ele me diz sussurrando às vezes gritando de quando em vez que nunca me deu relógios que os relógios tem vontade própria e que tem bocas enormes e que comem gente diz que o relógio que comeu meu pai minha tia minha vó diz que vai me comer querida minha com ou sem meu consentimento pergunto coisas e ele ri com cara de mau com cara de bom com cara de nada digo amor e ele ri dizendo amor não existe digo juventude e ele gargalha e diz ilusão digo dor e ele me olha com olhos de cão sem dono fala que a dor é a primeira moradora do universo diz que tudo mais é desencanto sim querida minha ele senta em minha porta e diz que senta em todas diz pra não me preocupar com os cabelos brancos ou com qualquer outra coisa diz que o flamengo pode ganhar ou perder e não importa diz que tanto faz tomar um porre ou se entupi de remédios tudo tudo tudo tudo não passa de perda de tempo. Não perca tempo querida minha. Ou perca. Tanto faz.

02 maio, 2008

novo síndico do borba gato


O professor Antônio Natalino Dantas, 69, coordenador do curso de medicina da UFBA (Universidade Federal da Bahia), fez uma declaração considerada preconceituosa por muita gente, de autoridades governamentais a artistas, passando por professores e estudantes.Ele disse na terça-feira que o baiano é burro, que tem baixo QI (Quociente de Inteligência), e emendou:
O baiano toca berimbau porque só tem uma corda. Se tivesse mais [cordas], não conseguiria.Para o governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), Dantas teve um “surto de imbecilidade”, conforme relato dos jornalistas José Eduardo Rondo e Renata Baptista, na Folha de hoje. Wagner nasceu no Rio.O músico baiano Tom Zé, 71, disse que não ia xingar o Dantas para que o professor não tivesse esse prazer.O Ministério Público Federal na Bahia abriu procedimento administrativo para apurar se as declarações de Dantas são discriminatórias.Dantas (foto) disse que o baiano tem baixo QI a propósito do desempenho dos estudantes da Universidade Federal da Bahia no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) – eles ficaram entre os piores.Diante da reação ao que diz ter sido um desabafo, o professor negou ser racista. Mas não recuou de sua afirmação.Detalhe: Dantas é baiano.
EXAGEROS - Ok. O professor exagerou no que ele chama de desabafo. Mas há outro exagero que não pode ser perdido de vista: a vergonhosa avaliação dos estudantes da UFBA no Exame de Desempenho. Quem neste momento desce o pau no professor Dantas deveria poupar um pouco de suas energias para ajudar a melhorar a qualidade de ensino naquela universidade. Dantas confirma declaração

01 maio, 2008



Sizunite sempre foi um herói sem caráter. Vivia com fome. De tudo. Olhava como um vampiro as filas intermináveis dos cinemas. Queria comer bundas. Sanduíches. Samambaias coloridas. Um dia o encontrei iluminado. Perguntei o motivo. Respondeu categórico: - ontem jantei um pensamento. Fechando os olhos, olhando pra trás querendo entender o que vem pela frente. Sinais.

Sizunite me conta coisas que lhe acontecem diuturnamente: a ponta de um cigarro que, depois de arremessada cai caprichosamente em pé, gente que se encontra na esquina do imponderável, pingos da chuva que acham que ele é um “i”, caem todos em cima dele. Ele diz que sabe que alguém, em algum lugar, se interessa pelo que ele anda fazendo. Sinais. Sempre os milagres dos sinais.

A mãe de sizunite diz que ele nasceu com olhos cor de nojo. Verdes. Diz que ele já saiu de sua boceta assim: com olhos de tédio, com olhos de nojo, com olhos de quem sabe do tédio. Quando comeu a primeira namorada ele me disse, assim, atôa: como bocetas porque sou faminto. E buracos corporais são mais que perfeitos. Sinais. Diz que gosta de beijar bocas – de homens ou mulheres, tanto faz – com gosto de água de côco e uísque nacional. Sinais. Ele diz que só ama se tiver escândalo. Só acaba de amar se com isso proporcionar uma calamidade. Sinais.

- Sizunite, você volta?
- tenho medo de voltar. Por isso vou sempre. Empurro portas. Espero o trem passar, mas não olho pra trás. Penso. É medo, ou uma vontade filha da puta, que não compreendo, ou não me compreende?
- você é simplesmente um escroto.
- mas, escrevo sem borracha. Ou então, como a borracha. Na certeza de não ter que apagar. De pagar pra não apagar. Sinais. Entende? Sinais.

Sizunite diz que só amou aurora. A aurora boreal. Cheia de sinais.

Edith piaf cantarola nos ouvidos moucos de sizunite. Edith piaf decreta o fim do feriado. A dor lupeliana de gastrite viva e sem mordaça. Edith piaf ama sizunite. E lhe pede pelo amor de deus que não traduza suas canções pra virarem coisas. Sizunite disse, no bar, que matou edith piaf com sua arma mais moderna: um belo revólver de língua que dispara seis mentiras por minuto. Sinais. Sempre os malditos sinais.

Sizunite me escreve um bilhete de despedida, e joga na minha janela: “sôe falso, consuma-se em silêncio, gargareje galos ao anoitecer. Porque se você esperar até amanhã de manhã, eu jogo um sol na sua janela. Você é um cego. E os cegos? Não sabem das borboletas. Nem sonham arco-íris.” Sinais. Sinais.