30 janeiro, 2008


polaroid esquizoid


Minha mãe disse que era agosto. Finalzinho do mês. Ela sabe, e lembra, porque faziam poucos dias que eu tinha nascido. E oito meses que meu pai tinha sido preso. Pra mim, é como se ele sempre estivesse preso. Não lembro bem dele. Depois da prisão minha mãe disse que ele mudou: desaprendeu a rir. Aprendeu a assoviar e costurar paletós. Virou isso: de anarquista a alfaiate. Pensando melhor, ele sempre esteve solto. E nós, amarrados em nós, é que vivíamos presos naquela mini cidade de nada.
*
Um dia nós fomos embora. Um comboio de pessoas grandes e tristes, e alguns meninos, comendo bolachas temperadas com excitação e medo. A rua gravitava no novo. Um batalhão de estranhos ao redor. Nada era igual, e ainda assim, era tudo absolutamente igual. A escola era um misto de guerra e circo. Todos nós, pobres de jó, morrendo de raiva de nós mesmos e de qualquer um que estivesse por perto. Tudo era arma: arame de caderno, ponta de lápis, pedras do pátio. Se chorasse, tava fodido: “viadinho! Mulherzinha”. A mãe: - se apanhar na rua, apanha em casa! Casa... pintada de verde esmaecido, com faixas vermelhas berrantes na altura da janela e em cima. Sem eira nem beira. O muro do quintal, caído, nos tornava parte da grande família dos vizinhos. Meninos pequenos nus, cagando a esmo, narizes sujos e grandes risadas. De que riam os meninos sujos?
*
Cheiro de tinta. Cheiro de cola de sapateiro. Tiras de sandália pra recortar. Quando chovia era voltar no tempo... fugir dos olhos da mãe. Rua. Água aos montes caindo do céu. Meu pai olhou pra mim e disse: cresça! Me fodi. Obedeci. E quando abri de novo os olhos, não tinha mais uma cidade. Eram dezenas. Não tinha mais meninos sujos. Eram homens sujos e violentos de lá para cá. Não tinha mais tarzan em preto e branco gritando pra assembléia de macacos. Era um homem de paletó gritando pra assembléia de macacos.
*
Minha mãe disse que tudo acontece em agosto.
Mês de chuva.
Mês de desgosto.

3 comentários:

Gabriela. disse...

Gosto quando textos me causam mal estar e me dão aquele nó na testa.

Assisti a tudo que escreveu como uma dos quadrinhos do Lourenço Mutarelli.

agosto, mês do desgosto, eu não poderia ter nascido em mês melhor.

Helder CESAR pinto disse...

è lampião, infancia ¨suja¨ e sadia não se esquece...melhora na memória, como tua escrita: fabulosa!

fjunior disse...

cara, o texto ficou muito bom... gostei demais... deixa com aquele gosto de quero mais... abraços e desculpa a invasão.